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O Homem que transportava o sino naquela tarde tropeçaria na pedra de uma calçada, das muitas calçadas que lhe perseguiam a solas dos sapatos. Como cola. Caminho e solas colados de muito caminharem juntos.
haveria de pousar o sino, mas antes disso acontecer percorreu com o olhar a praça que lhe pareceu deserta. Sentou-se na pedra do chão, fervia no sol da tarde. Estava quase a meio dela, ele e o sino, a única bagagem que transportava sob as costas. Era pesado - pensara a primeira vez que pegara nele há muito tempo atrás. Mas não hoje, hoje conseguira finalmente que fosse o sino a carrega-lo. Por isso vinha ele dentro do sino, quando, de sopetão, entrou praça adentro sobre a luz radiante do sol que naquela hora batia a calçada. Ofuscado, o sino, tropeçara numa pedra. Não chegaram a cair, equilibraram-se um no outro, quase de forma automática, como se homem e sino fossem um só. O homem dentro de um sino, isso sim - perguntaram todos ao mesmo tempo- e não caiu, exclamaram, nem partiu o sino. Responderia que não, bastavam que vissem. Como poderia ser lá, um homem transportado por um sino, e o sino, pousado no chão, nem se mexia, nem pernas tinha, como poderia lá ser. E espantavam muito os olhos, arregalados, e olhavam para o homem que dizia que naquela tarde, após milhares de quilómetros durante os quais transportara o sino sobre as costas, dia após dia, ano após ano, num ano muitos anos, que já dariam três vezes a volta às suas duas mãos, como dizia, numa viagem da qual desconhecia o destino, avançava e levantava-se e seguia em frente. Todos os dias. Tinha naquele dia, precisamente, conseguido que fosse o sino a transporta-lo e que foi dentro do sino que entrara naquela tarde pela praça adentro. Que não acreditavam que tal fosse possível, Então o homem abeirou-se do sino e pegando nele, fê-lo soar como soam os sinos. Num repente, a praça, que lhe parecera deserta, enche-se de gente, que ao vê-lo tombado no chão, o sino pousado ao lado, logo acorreram. Explicou-lhes que vinha dentro do sino, quando este tropeça na calçada. Foi assim que ali chegou. Não acreditaram. Juntaram-se em magotes, nas pequenas sombras que bordejavam a calçada, junto dos edificíos em redor e pediram-lhe para que tocasse o sino. Naquela tarde o sino haveria de ecoar de tal modo que ainda hoje podemos ouvi-lo em manhãs em que o nevoeiro percorre o rasto do rio que atravessa a cidade como um respiro no frio. A estátua que ali não existe erguida em memória de um homem que entrara dentro de um sino naquela tarde, ofuscado pela luz do sol, de sopetão, na praça que, ainda vazia, se haveria de encher. Hoje estava cheia de gente quando passei. Poderia descreve-la, mas não hoje e não sei se voltarei à praça, para a conseguir descrever, por isso imagino-a.
em fundo 'The Division Bell' de Ping Floyd.