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PROSAS VADIAS

PROSAS VADIAS

14.Mai.14

Diário de político em campanha forçada

Yann Arthus-Bertrand

 

As europeiadas são por assim dizer as eleições para o Parlamento Europeu, factor que concorre para um certo relaxamento dos costumes. Desapertam-se fivelas dos cintos, bebe-se vinho pela garrafa, bufa-se na praça pública, jaquinzinhos a feder a óleo de muitas frituras, idosos e mais novos catatónicos, velhas e mais novas esquálidas, beijos, abraços, noz moscada, ruas desertas, apoiantes a fugir. está um calor do caraças, e o Sócrates pá? Concorre ás eleições? Concorre? Jornalistas, os fotógrafos, os cinematógrafos, mais aquele arraia toda, atrás deles e eles atrás de nós. doem-me os dedos do pé direito, os da mão direita também, as calças a cair, vou ter que arranjar tempo para falar com o médico-assistente. Ainda agora começou e o stress rebenta-me pelas costuras. Já avisei que a campanha terá de ser soft, a idade pesa e, embora, precise dos votos como de pão para a boca, sempre posso voltar para a minha profissão, daí que, após 22 anos de Parlamento Europeu, mereço algum descanso. O pequeno-almoço tomado já numa pastelaria do centro, onde, entre carcaças e croissants ou croisantes, galões, meias-de-leite, em xícara quente, bicas e pastéis de nata, fiz o tirocínio dirigindo-me aos eleitores presentes, que por acaso eram poucos, dada a hora. Entretanto avisaram-nos que teria entrado um desempregado pelo café adentro e tivemos que sair, siga o cortejo, rua abaixo, - Como está minha senhora, aceita esta propagandazinha, pergunto, não vá a senhora explodir ali em plena praça do comércio. Enfim, não se pode ter tudo, embora já esteja habituado a desaforos de velhas damas ressabidas com a reforma. Não fui eu que a cortei, embora seja do partido no poder, não fui eu, querem lá ver o raio da velhota ainda me explode aqui - pensava, enquanto lhe estendia a propaganda. Mas não, a senhora era uma velha militante local, dai que fui recebido por dois abraços que me deixaram os ombros num estado lastimável. Político sorri, cola sorriso na cara e vai em frente. Do mal, o menos, já dizia a senhora minha Avó, com os anos bem contados e com muito para contar. O almoço, num pavilhão local, onde, ao som roufenho, nem mesmo eu percebi fosse o que fosse do que havia dito e muito menos aquela gente sequiosa de um futuro mais radioso e de políticos mais competentes Tinham ar de gente bem disposta, eleitores fiéis e bons pagantes, estavam bem vestidos, de cores garridas e alegres e, para além de tudo isso, já traziam bandeiras. De tarde, siga o cortejo, a feira de gado local encheu-se de povo, animais e outras bestas. Quando a comitiva entrou no recinto, confundidos com membros do governo, fomos, logo ali, confrontados com o arremesso de fruta de todo o tipo, incluindo as agora célebres bananas, este último gesto visto como de muito mau gosto pelos membros da comitiva, incluindo eu. Os ovos não fizeram a sua aparição provavelmente devido ao custo destes ou, como nos informaram os elementos organizadores do certame, devido à intensa utilização local na confecção da doçaria conventual, tendo sido decidido que estes seriam mal empregues em políticos da minha craveira. Registei a omissão. Quando tiver oportunidade corto umas verbas dos fundos europeus e depois digam quem é amigo, quem é? Mas não deverão tardar, pelo andar da carruagem, daqui até ao fim, tudo pode acontecer. O que vale é que este ano o staff pessoal de fatos e gravatas foi revisto e aumentado. A oposição, continua a fazer ataques parvos, uns fraquitos, não dizem nada que sirva o futuro dos portugueses,  -Se posso? Claro que sim, posso tirar uma "selfie" consigo, claro que sim, então olhe aqui para o passarinho... siga o cortejo.

10.Mai.14

...

a menina fútil



A menina fútil deu um bodo aos pobres;
pela primeira vez pôs avental...
Falou do gesto e seus intuitos nobres,
com palavrinhas brandas, o jornal...

- Os pobres ficaram pobres
e a menina fútil nunca mais pôs avental...

A menina fútil tem um cão de raça
que nunca saiu do quintal
e nunca viu uma cadela...
- Para a menina fútil, o seu cão de raça
deixou de ser um animal
e é um cãozinho de flanela...

... e a menina fútil tem um namorado
e atira-lhe promessas da janela...
Promessas... porque o resto era pecado
e pecar não é com ela...
(Fica sempre na rua, o namorado,
e é tão distante a janela...)

Mas a menina fútil tem um namorado;
tem um cão como feito de flanela;
e anda feliz por dar um bodo aos pobres
e ter descido a pôr um avental...

Lê e relê os seus intuitos nobres;
recorta o seu retrato do jornal;

- e os pobres continuam pobres,
e a menina fútil nunca mais pôe avental...


Sidónio Muralha - («Passagem de Nível» - 1942)
04.Mai.14

A mosca

 

 

O meu pai anda com a mania que é marisco

 

 

Os pais são bestialmente difíceis de entender e quem disser o contrário ou é orfão ou precisa de fósforo porque há coisas há coisas que toda a gente sabe mesmo os burros e uma dessas é esta dos pais serem bestialmente difíceis de entender o meu por exemplo que se calhar nem é dos piores é tão difícil de entender que ás vezes até me pergunto se ele não terá caído ao chão em pequenino sem ninguém saber agora por exemplo anda com medo de ser mexilhão e não fala noutra coisa na sexta-feira dei por ele a conversar com o senhor Silva do talho que é um que tem dois matadouros clandestinos e que vende carne tão esquisita que mesmo quando é vendida à peça parece picada e pus-me à escuta para ouvir o que eles diziam palavra que eu ainda estou gaga o tal silva dizia assim: isto vai de mal a pior meu amigo sim que se não metem o povo na ordem isto acaba mal então não querem lá ver que no outro dia veio aqui um pobre-diabo que nem para sabão ganha dinheiro porque lá em casa passa a chamar ladrão ao Silva e teve a lata de me dizer que a minha carne não prestava? A minha carne! Pensei que o meu pai ia concordar com tal pobre-diabo sem sabão porque lá em casa passa a vida a chamar ladrão ao Silva mas não senhor voltou-se para ele e disse-lhe o senhor Silva tem toda a razão olhe que eu ainda hoje disse lá no trabalho que se não metem o povo na ordem isto caba mal fiquei de boca aberta a olhar para ele palavra que fiquei pois daí a bocadinho estávamos os dois sentados num banco de jardim ao pé do lago para o meu pai ler o jornal por cima do ombro dum senhor que o tinha acabado de comprar e vai chegou-se a nós o senhor Carlos da capelista que é o homem mais lido da Graça e disse-lhe assim o senhor sabe o que nos está a tramar a vida sabe? pois fique sabendo que é não deixarem o povo fazer o que quer porque ninguém brinca com o povo, olhe meu amigo se o povo cá da Graça mandasse o Silva do talho já tinha ido ao ar porque esse bandido não vende senão carne podre preparei-me para ouvir o meu pai discutir porque não ainda cinco minutos antes o tinha ouvido falar com o Silva mas sabem o que ele disse sabem? pois se não sabem fiquem sabendo que se voltou para o senhor Carlos da capelista e disse tem toda a razão toda meu amigo olhe que ainda hoje lá no trabalho estive a dizer que o mal disto tudo era o povo não puder o que quer palavra que fiquei sem fala mais caladinha que um mudo sem boca e vai daí a bocadinho quando o senhor Carlos partiu para ir pregar para outra freguesia virei-me para o meu pai e perguntei-lhe oiça lá você é por o povo fazer o que quer ou é por o povo não fazer o que quer? e vai ele virou-se para mim e disse esta coisa que ninguém entende quando o mar bate rocha quem se lixa é o mexilhão fiquei logo a pensar que ele estava era maluco de todo e que o melhor era eu ir chamar a minha mãe sim porque já lhe tem dado para ser comerciante vendedor de propriedades angariador de publicidade e mais uma data de coisas que acabam por ele nunca conseguir vender nada mas nunca lhe tinha dado para ser marisco e com o negócio do peixe como está se lhe dava para continuar com a mania de ser mexilhão lá ficávamos sem a televisão como aconteceu daquela vez que lhe deu para andar de porta em porta cá na Graça a vender apartamentos no Algarve enfim daí a bocadinho íamos a caminho de casa e o meu pai esbarrou com o senhor Eusébio que é do partido socialista e que lhe disse então meu amigo como anda? cheio de esperança na vitória cá do partido ou quê? e vai ele respondeu com toda a lata tenho-a por certa senhor Eusébio isto está tão certo como dois e dois seram quatro já quase a chegarmos a casa demos com o senhor Adalberto da pastelaria que é do partido comunista que lhe disse ao ouvido estão desta vez é que vai camarada? e vai ele respondeu com toda a lata já cá canta camarada Adalberto isto desta vez não falha e mesmo à porta de casa esbarrámos com o antigo chefe Roberto que agora trabalha na funerária e que lhe segredou muito baixinho o amigo não desespere que isto já se começou a organizar é só esperar e vai ele respondeu não espero outra coisa senhor Roberto olhe que não espero outra coisa palavra que é de uma pessoa ficar doida quando íamos a subir a escada perguntei-lhe oiça lá de que partido é você? e vai ele respondeu com toda a lata quando o mar bate na rocha quem se lixa é o mexilhão como se fosse natural um homem da idade do meu pai com uma filha crescida e responsabilidades na vida andar com a mania que é marisco.

 

 

Luís Sttau Monteiro, em "A Mosca", suplemento do Diário de Lisboa, 8 de Julho 1974.