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PROSAS VADIAS

PROSAS VADIAS

22.Dez.09

O Mistério do Natal

 

Recordo, discretamente e com humor (humor e discrição estão na moda últimamente), que faço parte de um grupo que tenta, a muito custo, repor a verdade histórica, sobre a figura paterna daquele menino que, segundo reza a lenda, nasceu de 24 para 25 de Dezembro na pequena aldeia de Nazaré. Tenta este grupo, por todos os meios, recolocar José como o único pai do menino. Por outro lado ficamos tentados a dar razão a uma das máximas do cristianismo. Se não descortinam qual é leiam a noticia que se segue. Até dia 24 tem ainda algum tempo para reflectir sobre as novas propostas anglicanas sobre o sistema capitalista. Pode ser que se convertam ou entretanto mudem de religião. Como ouço dizer só o burro do presépio é que não muda. Quem sabe?

19.Dez.09

Porque hoje parece que é Sábado

Por esta época a chusma de almoços, jantares e convívios de Natal parecem nunca mais acabar. Promovidos ali pela associação do fim da rua, ou dos amigos dos amigos das mil e umas amizades que se estabelecem, pelos motivos mais comezinhos ou não. Os de família também estão incluídos. Como já tenho pouca pachorra para aturar o espírito com que barram o pão nosso de cada dia nesta época, sou muito selectivo no que diz respeito à minha presença nestas ocasiões. No entanto até nesses poucos, por vezes, faço-me acompanhar da respectiva pastilha de gurosan ou do fervilhante alka-Sheltzer. Por uma simples e comezinha questão de princípio. É que, no remanso do repasto, muito dos imbecis, que passam a maior parte do ano a dizer mal do regime cubano, puxam dos seus charutinhos importados "made in Cuba" e dão-se ares de gente importante. Habitualmente rematam a primeira baforada com a frase: Estes é que são dos bons. Originais. São cubanos. O que eles são eu sei, mas não escrevo. Não por qualquer espécie de pudor, apenas para não me imiscuir com a ética deste tipo de gente. Afinal também é Natal em Cuba.

13.Dez.09

sobre a invenção do natal

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Génio? Neste momentoCem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente

Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,

Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeiraTalvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.


Álvaro de Campos, 15-1-192

11.Dez.09

a extremidade da unção

Em pleno século XXI, ainda e após Afonso Costa, eu sei: eles abominam o Costa.Por isso refiro o Costa. Podia referir outros. A quem ainda não pediram desculpa. Eles que vivem da memória e do Direito canónico. Entretanto, no Verão passado, segundo leio - abispado - conseguiram manter em funções ( ditas públicas? dita o meu espanto!) nos hospitais num Estado que, acima de tudo, deve preservar a liberdade religiosa dos seus membros.Sim, eu sei, deus está por cima de tudo, sendo assim, como existem muitos deuses, a confraria celestial deve andar ás turras com o caso da excepção.

 

 

O método é simples extingue-se a designação de capelão ou altera -se a nomenclatura da dita (onde é que eu já vi isto), e continuam a vender a salvação da alma em troca de uns níqueis para os oficiantes da igreja católica, que também ela passa por grave crise: de vocações e financeira, embora a fenomenologia em Fátima arraste multidões de seguidores do embuste. Prebendas e bens de capela pelos vistos mantém-se. Quem quer ser salvo lá obriga o Estado a abrir os cordões da bolsa. Não tenho nada contra o catolicismo, a não ser sobre essa espúria fórmula com que continua a arvorar-se em religião oficial ou oficializada do Estado e das gentes. A jornalista Fernanda Câncio transforma  o assunto num "match" entre Estado e Bispos. Não está mal, bem pelo contrário, explica o acordo muito, mas muito bem, explicado. O que pode ser uma troca com o casamento  civil entre pessoas do mesmo sexo. Espero que não aconteça o que estou a pensar. É que herdei algo desse Tomé que dizem ser apóstolo. Com tantas dúvidas... Das duas uma ou o jogo se desenrola entre toma lá, dá cá. O jogo cínico da diplomacia. Ou ficamos outra vez a ver passar navios num Estado laico. Que o Estado continue a pagar aos agora assistentes católicos é que não me cabe na cabeça. Já agora também recebem horas extraordinárias?

11.Dez.09

da Falsidade ou de como todo o mundo se engana

 

O falso é construído, em grande medida, a partir do verdadeiro. Embora não sendo muito fácil descobrir que uma coisa é falsa, arte dada a especialistas, esta pode ser verdadeira. Embora falsa, existe. Reparem numa das famosas actividades a que se dedica boa parte da economia chinesa. A de fazer parecer verdadeiro o que é falso. Um rolex falso é verdadeiro. Existe. Ou não? É falso? E depois? Só quem percebe é que detecta a falsidade. A falta de veracidade. Os outros, esses acreditam que é um "rolexz" dos verdadeiros. Verdadeiro mesmo! Vejamos o caso de uma pintura atribuida a um pintor famoso. Descobre-se que é falsa. Meio mundo considerava-a verdadeira. Mas essa qualidade só é adquirida quando olhos treinados ou máquinas detectam a falsidade, até lá ela foi verdadeira. Pertencia aquele pintor. Quando se afirma que algo é falso estamos a partir do pressuposto de que o verdadeiro existe. Embora o verdadeiro só seja passível de ser detectado por quem consegue distinguir o verdadeiro do falso. E isso é uma ciência. Uma Arte, se assim lhe quiser chamar.

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