O desafio maior para um autarca, neste caso presidente de Câmara Municipal, surge do confronto entre ordenamento e desenvolvimento da urbe. Coimbra, onde o passado vive paredes meias com o presente, cada vez mais envenenado, uma autarquia deve (devia) ter em conta essa estranha mistura entre ambos. Não sendo tarefa fácil, importa discernir motivos, caminhos, valências, interpretando-as no sentido do acordo. Esta questão não é de hoje. Relembro aqui, a traço rápido, a eterna questão desta Coimbra ensimesmada na colina. O crescimento urbano desenvolvido em redor do casco da Almedina, que obrigaria a um permanente "bota-abaixo" (não, não é nessa zona que em meados dos anos sessenta começou a ser derrubada e que ficaria durante anos abandonada, baptizada popularmente entretanto como o Bota-Abaixo) e consequente desaparecimento de alguns edifícios, cujo álibi, sempre e desde sempre reiterado, foi a pequenez e falta de espaço da zona baixa da cidade. Ponto assente, para desenvolver Coimbra haveria que demolir. Assim desaparecem a velha prisão, esse outro edifício que emoldurava a entrada da ponte na zona então nobre da Portagem. Poderíamos falar do desaparecimento do Largo do Trovão, durante o alteamento das margens do rio a sul do referido Largo. Mas quem sabe hoje onde ficou enterrado o Largo do Trovão? Parece assim um acordo impossível. Acordo inexistente de facto. Por falta de espaço. Sustentada no poder do mais forte sobre o mais fraco, na cidade tudo se alterou, tudo se modificou, poucas vezes para melhor. Um dia, essa pressa chegou igualmente à Alta coimbrã. Poucos (muito poucos) se levantaram, defensores da deslocalização dos novos edifícios (necessários) para zonas próximas da cidade. Terrenos periféricos, fora do hábito costumeiro de entender o que era então a cidade. Ficavam longe, muito longe, há cinquenta e poucos anos atrás. O tempo esse era de medo. Tempo de lambe-botas e subserviente ao poder maior. Hoje poderemos questionar - face á eternização da requalificação do que resta - se não teria sido esse um remédio. Mas só pensamos assim aparentemente. Imaginemos então o espectaculo deprimente da Alta coimbrã demolida se esta ainda existisse. Imagine-se o que seria o actual abandono e o estado de degradação daquela zona, tendo em conta os que resistiram e sobreviveram. A vingança (se assim lhe podermos chamar) de Oliveira Salazar, talvez pelo vexame da curta prisão, mandou, sobre ela, avançar o ferrete arquitectónico do Estado Novo. Na segunda metade do século XX, Coimbra vai modernizar o casco medieval da sua parte mais Alta, à força, de camartelo. Uma ideia de cidade morreu ali. Mas existem outras, embora não queiramos sujeitar este texto a uma eterna lamentação. Embora o seja, não é disso que aqui tratamos. Porque entretanto o poder autárquico pós-74 nunca foi capaz de resolver o problema. Mendes Silva foi igualmente culpado desta feérica ideia de Coimbra. Coimbra de futuro, mas sem rosto. Ora, quando dos ventos das diversas e diferentes modernizações sopraram sempre medidas de subalternidade do passado, de sujeição a uma modernização serôdia, de uma permanente venda a pataco do casco medieval, tal facto devia obrigarmo-nos a uma sólida e permanente reflexão. Poderemos
chegar lá através destas fórmulas. Também. Embora o responsável, também ele parte dessa plêiade de decisores do futuro desta cidade nas últimas décadas. Durante as quais os erros se têm vindo a acumular de uma forma absolutamente irresponsável. Lutar pela identidade não é arenga de passadistas. Assim desapareceram os "ronceiros" e barulhentos eléctricos de uma cidade que se diz, como descobri na identificação da notícia desse Sol lisboeta, do interior. Em Portugal voltou a imperar o velho silogismo de que fora da capital só existe província. Provincianismo lisboeta que, de novo, fede. Embora tenha sabido manter os "carros eléctricos" a circular nas suas ruas. O que denuncia toda essa diferença. Entre uma capital e uma cidade de interior e provinciana.